terça-feira, 14 de agosto de 2007

Qualificação Como OSCIP e o Título de Utilidade Pública

A IMPOSSIBILIDADE DE MANUTENÇÃO SIMULTÂNEA DA QUALIFICAÇÃO COMO ORGANIZAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL DE INTERESSE PÚBLICO (OSCIP) E DO TÍTULO DE UTILIDADE PÚBLICA FEDERAL
Damião Alves de Azevedo-Coordenador de Títulos e Qualificação do Ministério da Justiça Mestrando em Direito, área de concentração em Estado e Constituição, pela Universidade de Brasília (UnB)
Pesquisador do grupo de estudos Sociedade, Tempo e Direito, da Faculdade de Direito da UnB
1 A dúvida quanto à aplicação do artigo 18 da Lei 9.790/99 – 2
A adequada interpretação da norma – 3 Qualificações estaduais
e municipais – 4 As conseqüências de uma inadequada
interpretação literal – 5 Conclusão

1 A dúvida quanto à aplicação do artigo 18 da Lei 9.790/99
Não obstante a Lei 9.790/99 que criou as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP’s) já tenha mais de cinco anos de vigência, ela ainda suscitaalgumas dúvidas em sua aplicação. Uma destas dúvidas se levantou recentemente em razão de se ter expirado o prazo, estabelecido por seu art. 18, para a manutenção simultânea demúltiplas qualificações legais às organizações privadas qualificadas como OSCIP’s.
O prazo estabelecido originalmente fora de dois anos a partir da promulgação da lei.
Conforme dados do Ministério da Justiça, ao findar este prazo apenas 21 organizaçõesqualificadas como OSCIP’s possuíam também o título de utilidade pública federal. Todavia, atendendo-se ao apelo de algumas entidades, o prazo foi estendido por medida provisória para cinco anos.
Mesmo com a prorrogação o número de OSCIP’s que possuíam outras qualificaçõescontinuou não sendo expressivo. Também conforme os cadastros do Ministério da Justiça, em março de 2004, quando expirou a prorrogação, das cerca de 1.818 OSCIP’s existentes, e das cerca de 10 mil possuidoras do título de utilidade pública federal, apenas 107 possuíam ambas qualificações.
Vencido o prazo, 45 delas optaram pela manutenção do título de utilidade públicafederal, 35 não manifestaram ao Ministério da Justiça sua opção, o que ensejou a perda daqualificação como OSCIP, e apenas 27 optaram por manter a qualificação com base na Lei9.790/99.
A dúvida que se tem levantado diz respeito à redação do art. 18 da Lei 9.790/99,especialmente seu parágrafo primeiro, que fixou o prazo para que as OSCIP’s optassem pela manutenção ou cancelamento desta qualificação. Alega-se que a norma contida naquele parágrafo só aplicar-se-ia às organizações que já possuíam outras qualificações antes de verem reconhecida sua qualificação como OSCIP, e não àquelas que somente vieram a obter outras qualificações após já terem se qualificado como OSCIP.

2 A adequada interpretação da norma
Dispõe o art. 18 da Lei 9.790/99, com redação determinada pela Medida Provisória2.216-37, de 31/08/01:

Art. 18. As pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos, qualificadas combase em outros diplomas legais, poderão qualificar-se como Organizações daSociedade Civil de Interesse Público, desde que atendidos aos requisitos para tantoexigidos, sendo-lhes assegurada a manutenção simultânea dessas qualificações, atécinco anos contados da data de vigência desta Lei.
§ 1o Findo o prazo de cinco anos, a pessoa jurídica interessada em manter a
qualificação prevista nesta Lei deverá por ela optar, fato que implicará a renúnciaautomática de suas qualificações anteriores.
§ 2.º Caso não seja feita a opção prevista no parágrafo anterior, a pessoa jurídicaperderá automaticamente a qualificação obtida nos termos desta lei.

A interpretação do dispositivo acima, como de resto qualquer interpretação de texto,deve ser sistemática, isto é, deve levar em conta o contexto em que está inserida para sedescobrir, pela letra do texto, o conteúdo normativo da lei. É preciso distinguir entre ossignificados de texto e norma. O texto é a letra da lei. A norma é a disposição imperativaextraída do processo de interpretação/aplicação do direito. A lei existe em abstrato. Já a
norma só pode ser obtida no momento em que se revela o dilema de sua aplicação, ao sepretender fixar, perante o caso concreto, qual é a conduta conforme o direito.
Iniciemos a discussão pela contradição mais óbvia. Aqueles que afirmam que oparágrafo primeiro do art. 18 não se aplica àquelas organizações que não tinham“qualificações anteriores” no momento em que se qualificaram como OSCIP’s acreditam estar fazendo uma interpretação literal da lei. De acordo com seu argumento a palavra “anteriores”, utilizada no parágrafo primeiro, criaria duas situações distintas, e, conseqüentemente, direitos distintos. A primeira situação seria aquela das organizações que, ao momento de sua qualificação nos termos da Lei 9.790/99, já possuíam qualificações estabelecidas em outros diplomas legais. A segunda seria aquela das que, ao obterem a qualificação disciplinada na Lei 9.790/99, não possuíam qualificações baseadas em outras leis.
Contudo, esta sequer é uma aplicação perfeita do princípio da literalidade. Oargumento dirige seu foco única e exclusivamente sobre a expressão “anteriores”,esquecendo-se de utilizar o mesmo critério da literalidade em outros trechos do texto.
Veja-se que o artigo trata, literalmente, de qualificações obtidas com base em outrasleis. Logo, se fosse suficiente fazer uma interpretação literal do artigo, como a que aquelesque defendem o argumento acima acreditam estar fazendo, não se poderia, por exemplo,jamais incluir dentre as hipóteses de incidência do art. 18 o título de utilidade pública federal, pois a Lei 91/35 estabelece não uma “qualificação”, mas um título.
Não se trata de uma distinção meramente semântica. O título de utilidade pública nãodecorre de uma natureza especial da pessoa que o detém, não expressando pois uma qualidade intrínseca àquela pessoa jurídica. O título de utilidade pública decorre de ações relevantes prestadas à sociedade por uma organização particular. Já a definição de OSCIP, como estabelece literalmente a lei, é uma qualidade peculiar de certas pessoas jurídicas. Qualidade esta verificável em seus atos constitutivos, independentemente de qualquer ação que ela tenha realizado.
Literalmente, o objetivo da Lei 91/35 é estabelecer uma láurea de dignidade, umahonraria, destinada às pessoas jurídicas privadas sem fins lucrativos. Honraria em tudosemelhante às distinções concedidas a pessoas físicas através de medalhas, por exemplo. Otítulo de utilidade pública não é uma qualidade essencial da pessoa jurídica, como a
estabelecida pela Lei 9.790/99. Pelo contrário, a concessão do título é um ato pelo qual aAdministração apenas reconhece publicamente a relevância das ações promovidas por umaorganização privada. O título não diz da qualidade da pessoa, mas sim da relevância deserviços prestados no passado. Tanto é assim que para a concessão do título não basta que a
associação ou fundação se revista de um certo formato, como nas OSCIP’s. É preciso que ela prove que, por pelo menos três anos, esteve dedicada a “servir desinteressadamente àcoletividade” (art. 1.º da Lei 91/35, c/c o art. 2.º, e, do Decreto 50.517/61). E a concessão do título não altera e nem reconhece uma qualidade à sua detentora. O título visa unicamente reconhecer o caráter público não da pessoa, mas das atividades por ela desempenhadas. Prova disto é que para continuar a ostentar o título ela precisa, todos os anos, provar ao Ministério da Justiça que continua a servir desinteressadamente à coletividade. O simples fato de não se apresentar por um ano seu relatório de atividades já pode justificar a cassação do título (art. 4.º da Lei 91/35). E no caso de três anos em atraso o parágrafo único do art. 4. º da Lei 91/35, bem como o art. 6.º, a, do Decreto 50.517/61, determinam a cassação do título sem deixar, literalmente, qualquer opção ao administrador público. Raciocínio similar também pode ser construído sobre o Certificado de Entidade de Assistência Social (Decreto 2.536/98).
Completamente diferente é a qualificação como OSCIP, na qual o Estado apenas atestauma condição a partir da análise dos estatutos da organização. Logo, atesta uma condição preexistente ao ato administrativo que a reconhece publicamente. Isto fica evidente pelo fato de uma associação ou fundação que acaba de registrar seus atos constitutivos no cartório competente, recém nascida para o direito, pode imediatamente solicitar que a Administração reconheça sua qualidade de OSCIP, sem que ela jamais tenha desempenhado qualquer ação relevante e nem mesmo ter sequer dado cumprimento a uma só linha de suas finalidades estatutárias. E mesmo assim só perderá tal qualificação em processo judicial ou administrativo, de iniciativa popular ou do Ministério Público (art. 7.º da Lei 9.790/99).
A distinção é literal, está expressa nos textos das leis mencionadas. A Lei 9.790/99não confere uma láurea de dignidade por reconhecimento a serviços prestados. Ela criainequivocamente um critério para se identificar uma qualidade especial a certas pessoasjurídicas. Ela dispõe expressamente sobre quais são aquelas que não têm esta qualidade (art. 2.º) e também sobre as cláusulas específicas que devem constar em seus estatutos para que fique caracterizada a qualificação (art. 4.º). No caso das OSCIP’s o Estado reconhece, como dispõe literalmente a lei, uma “qualificação”, uma qualidade que é típica a um certo tipo de organizações e que as distingue de outras pessoas jurídicas de mesma natureza.
No caso do título de utilidade pública o Estado não se manifesta sobre uma qualidadeinerente aos atos constitutivos da organização, distinguindo-as de outras associações efundações. Ao conceder o título apenas se confere reconhecimento público a atividades nobres, ou socialmente relevantes, que aquela pessoa jurídica desempenha no seu cotidiano. É uma recompensa meritória por atos de relevância pública já praticados. Recompensa esta que deixa de existir tão logo interrompidas tais atividades. Ao contrário da qualificação como OSCIP, que é um adjetivo que adere à natureza da entidade e que decorre não das ações realizadas no passado, mas dos próprios atos constitutivos da associação ou fundação.
Não obstante, os mesmos que defendem a aplicação literal da expressão “anteriores”afirmam que o art. 18, ao tratar de “qualificações” se refere ao título de utilidade públicafederal. Ora, para aplicar a literalidade no que concerne à expressão “anteriores”, dever-se-ia aplicá-la ao texto integral. Porém, se tentássemos aplicar a mesma interpretação literal ao
conjunto do texto, a expressão “qualificações” não poderia jamais se referir ao título deutilidade pública federal.
Uma das primeiras regras de hermenêutica é que não se podem aplicar, simultaneamente, diferentes códigos de tradução e diferentes regras de interpretação, preferindo ora umas, ora outras, conforme a conveniência do intérprete. Aplicar a literalidade a apenas um trecho da lei, não o fazendo quanto aos demais, mais que uma aplicação parcial, é uma aplicação falsa do princípio. Uma aplicação gradual de diversos princípios a um mesmo
caso exige uma ponderação concreta dos valores do intérprete, condenando o resultado dainterpretação a sempre depender de suas preferências axiológicas arbitrárias.
Uma interpretação/aplicação integralmente literal do artigo nos faria chegar à absurdanegativa de vigência da norma, pois, sem recorrermos ao contexto jurídico no qual ela seinsere, jamais poderíamos afirmar que tal artigo obriga a uma opção entre a qualificação como OSCIP e o título de utilidade pública. E se não obrigasse a esta opção, ele restaria totalmente inútil, permitindo com que as diversas organizações do terceiro setor qualificadas como OSCIP continuassem com os múltiplos enquadramentos legais que lhes eram permitidos antes de buscarem a qualificação com base na Lei 9.790/99. E a esta conclusão, certamente, sabe-se que não se pode chegar. Por isso afasta-se casuisticamente a literalidade ao tratar da definição legal de “qualificações”.
Os mesmos que tentam interpretar literalmente o adjetivo “anteriores”, contido nocitado parágrafo único, também percebem que a norma decorrente do artigo 18 se dirigeclaramente a diplomas legais como aquele que dispõe sobre o título de utilidade pública, não obstante este diploma não trate literalmente de uma qualificação. Neste caso, ao invés da literalidade, fazem uma interpretação sistemática e contextualizada, buscando um conteúdo normativo que só pode ser deduzido do contexto jurídico no qual a Lei 9.790/99 está inserida e para o qual foi elaborada. Este casuísmo, evidentemente, compromete a lógica da legislação.
É preciso ter em perspectiva que qualquer interpretação, mesmo a que se pretendeliteral, só é possível a partir de uma atribuição de significado, somente apreensível mediante um processo de contextualização. Como afirma Habermas: “Todas as normas vigentes são naturalmente indeterminadas, inclusive aquelas cujo componente ‘se’ explicita a tal ponto as condições de aplicação, que elas somente podem encontrar aplicação em poucas situações típicas padronizadas e muito bem descritas (e podem encontrar aplicação sem dificuldades hermenêuticas).[....] Todas as demais normas continuam indeterminadas com relação à sua situação, necessitando de interligações suplementares no caso concreto – e isso vale não somente para os direitos fundamentais e princípios do Estado de direito, à luz dos quais o sistema jurídico pode ser justificado em sua totalidade.”1 (Grifo nosso, itálicos no original).
Isso se comprova pelo fato de que não é preciso um esforço digno de um Hércules deDworkin para perceber que o artigo 18 da Lei 9.790/99 contém um imperativo que só pode ser extraído levando-se em conta os diplomas legais acerca das organizações do setor público não estatal, isto é, considerando-se as normas dirigidas às organizações típicas do chamado Terceiro Setor. Além do título de utilidade pública citado pela requerente, poderíamos lembrar outros diplomas legais, tais como a lei sobre Organizações Sociais, n.º 9.637/98, a lei sobre as fundações de apoio às instituições federais de ensino superior e de pesquisa científica e tecnológica, n.º 8.958/94, a Lei Orgânica da Assistência Social, Lei 8.742/93, e, em certos aspectos indiretos, até mesmo a lei sobre cooperativas sociais, n.º 9.867/99. E isso para ficar somente no âmbito da legislação federal, pois há incontáveis leis sobre títulos de utilidade pública estaduais e municipais, conselhos de assistência social estaduais e municipais.
3 Qualificações estaduais e municipais
Quanto às qualificações estaduais e municipais cabe uma observação à parte.
Entendemos que a opção do art. 18 da lei das OSCIP’s é dirigida apenas às qualificaçõesfederais porque a qualificação é norma de organização administrativa. As qualificações de
(1 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Volume I, Rio de Janeiro: TempoBrasileiro, 1997, p. 269-270.)
organizações civis se prestam à disciplinar a relação entre o ente federativo que expediu anorma e as organizações da sociedade civil. A competência para legislar em matériaadministrativa é competência comum da União, estados e municípios. A competência paralegislar sobre organização administrativa não se encontra explícita no art. 23 da Constituição e em nenhum outro artigo porque decorre da autonomia federativa o poder de cada uma destas pessoas de direito público organizar a sua própria administração. Uma vez que o art. 18 da Constituição estabelece que a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios são autônomos é forçoso concluir que esta autonomia pressupõe o poder de legislar acerca da sua própria organização administrativa.
A lei federal que estabelece qualificação a organizações civis em nada pode interferirnas qualificações concedidas pelos demais entes da federação. Basta lembrar que, dentre osmilhares de municípios brasileiros, muitos sequer têm uma lei que regule o título de utilidade pública municipal, sendo este concedido por ato da Câmara Municipal, freqüentemente por lei, tal como se dava com o título federal antes de 1935. Deste modo, a organização que possui um título municipal como este sequer pode optar em deixar de tê-lo, pois para cancelálo não basta um mero requerimento ou ato administrativo. É preciso lei municipal. E o município, é certo, não é obrigado a legislar, mesmo se entidade requeira o cancelamento do título. Portanto, as qualificações oferecidas a organizações civis pela União, estados e municípios atendem a necessidades de cada um destes entes federativos. Por serem expressão da autonomia administrativa elas existem paralelamente e não se sobrepõem.
Mas é preciso distinguir o que é norma de organização administrativa e outras normaspor ventura existentes na lei federal que não têm a mesma natureza. Na Lei 9.790/99, porexemplo, há duas matérias distintas: a) a qualificação como OSCIP; b) a instituição do Termo de Parceria. Não obstante sejam temas indissociáveis, na medida em que a constituição de um Termo de Parceria exige a qualificação como pressuposto, são matérias distintas. A qualificação, em si, é matéria que de organização administrativa da União. Já o Termo de Parceria estabelece uma forma de contratação facilitada com o Estado e, portanto, se insere no âmbito da competência do art. 22, XXVII, da Constituição, devendo ser observada não apenas pela União, mas por todos os demais membros da federação. Assim, não obstante os estados e municípios possam até mesmo criar qualificações semelhantes à da Lei 9.790/99, com critérios totalmente distintos, não podem criar disciplina para Termos de Parceria estaduais ou municipais que não observem o disposto na lei federal. Como a Constituição estabelece que compete privativamente à União legislar sobre “todas as modalidades” de contratação da Administração Pública, e como o Termo de Parceria é uma modalidade de contratação, toda a Administração Pública está obrigada a observar as normas da Lei 9.790/99 relativas ao Termo, embora a qualificação que a mesma lei criou seja um ato exclusivo da União.
Mas independente das disposições relativas ao Termo de Parceria, o disposto nosparágrafos do art. 18 não pode se estender às qualificações concedidas por outros membros da federação porque estas qualificações obedecem a leis estaduais e municipais que não sesubordinam às normas da qualificação federal.
Registre-se, por exemplo, a Lei Estadual de Minas Gerais, n.º 14.870, de 16/12/2003,que cria uma qualificação como OSCIP a ser feita pelo Poder Executivo Estadual. Esta leipraticamente reproduz a lei federal. Mesmo alguns dispositivos que explicitam a necessidade de fiscalização pelo Ministério Público e outras regras de controle (art. 9.º e seguintes) não podem ser considerados inovações, visto que o art. 7.º da lei federal também estabelece que o Ministério Público e os cidadãos podem representar administrativa ou judicialmente contra irregularidades nas OSCIP’s. Mas independente disso, o fato é que não há qualquer ilegalidade em que um Estado ou Município crie uma qualificação própria e mesmo traga certas disposições sobre o Termo de Parceria, desde que tais disposições não conflitem com as normas federais relativas ao Termo de Parceria.
Em suma: as normas relativas à uma qualificação feita por ato administrativo é decompetência do ente federativo que expede o ato. Portanto o art. 18 da Lei 9.790/99 não pode restringir a autonomia dos outros entes da federação de expedir seus próprios atos administrativos relativos à qualificação, que é mero reconhecimento público de uma
organização privada. Por exemplo, se uma certa lei estadual deseja reconhecer como deinteresse público somente organizações dedicadas à ecologia tal qual um título honorífico de utilidade pública do qual não decorrem benefícios, isso não prejudica ninguém. Nem a
sociedade, nem os demais entes federados. Significa apenas que naquele Estado o PoderPúblico reconhece uma relevância especial a esta atividade. Contudo, no que diz respeito àcontratação de entidades privadas, ele não pode desobedecer as normas federais. Isto é, elenão pode restringir um eventual termo de parceria estadual a uma ou algumas categorias de
entidades, pois estaria desobedecendo uma norma geral que permite a parceria com entidades que realizam o interesse público em diversas outras atividades.
O artigo 18 da Lei 9.790/99 só faz sentido levando-se em conta todas aquelaspossibilidades de enquadramento das organizações da sociedade civil oferecidas por outrasleis federais. E dificilmente seria possível uma uniformidade de tratamento destes incontáveis enquadramentos. Por exemplo, lei sobre as Organizações Sociais dispõe em seu artigo segundo sobre qualificação, enquanto a Lei Orgânica da Assistência Social, em seu artigo 18, dispõe sobre certificação. Já a lei sobre fundações de apoio não exige qualquer ato administrativo para o enquadramento legal da fundação.
Portanto, o artigo 18 da Lei 9.790/99 só mantém a integridade e coerência doordenamento jurídico se, ao interpretá-lo, afastamos uma interpretação literal e partimos dopré-suposto que as organizações não governamentais podem se enquadrar em diferentesdiplomas legais. E, de acordo com cada possível enquadramento, cada uma destasorganizações terá um papel distinto na sociedade e um relacionamento distinto com o Estado.
A opção constante no artigo 18 se refere exatamente a esta realidade de múltiplosenquadramentos, que sempre foi a regra no tratamento dispensado pelo Estado àsorganizações públicas não estatais. A Lei 9.790/99 se apresenta como uma alternativa para o Terceiro Setor porque pretende dar clareza ao relacionamento entre as organizações da
sociedade civil e o Estado, tanto no que se refere aos seus papéis e obrigações recíprocas,como no que se refere à compreensão que a sociedade deve ter deste relacionamento e danatureza daquelas organizações. A disciplina legal sobre o Terceiro Setor, até os anos
noventa, dava prioridade às organizações caritativas e às de assistência social, deixando uma lacuna acerca dos novos movimentos sociais e acerca de outras causas públicas que passaram a mobilizar a sociedade civil, mas não se enquadravam precisamente no conceito de filantropia ou assistência social. Foi esta lacuna que a Lei 9.790/99 pretendeu colmatar,
criando-se uma disciplina que contemplasse os interesses e as demandas de novosmovimentos sociais e o novo perfil das organizações da sociedade civil.
4 As conseqüências de uma inadequada interpretação literal
Se não bastasse apontar este equívoco para demonstrar-se a inadequação de umainterpretação pretensiosamente literal, poderíamos também lembrar as conseqüências práticas absurdas que adviriam dela, caso fosse aplicada.
Se fosse admissível aquele argumento aqui refutado; segundo o qual o artigo 18 criaduas situações distintas, e conseqüentemente direitos distintos; estar-se-ia estabelecendo uma discriminação esdrúxula e sem fundamento entre as organizações da sociedade civil. Pois àquelas que obtiveram o título de utilidade pública antes de obter a qualificação como OSCIP seria proibido o duplo enquadramento. Já àquelas que, já sendo OSCIP’s, pleiteassem o título de utilidade pública, o duplo enquadramento seria permitido. Ora, a lei só pode estabelecer tratamento distinto baseado em razões justificáveis pelo interesse público, e não há neste caso qualquer razão plausível que justifique tal discriminação. Organizações idênticas estariam tendo um tratamento distinto sem qualquer razão de ordem pública que o legitimasse.
Organizações que atuaram durante anos, ou mesmo décadas (visto que há títulos de utilidade pública concedidos mesmo antes da Lei 91 de 1935!) ostentando o título de utilidade pública federal estariam proibidas de mantê-lo caso se qualificassem como OSCIP, enquanto outras, recém-criadas e que não deram cumprimento a uma só linha de seus estatutos, poderiam perfeitamente obtê-lo, pelo simples fato de não o terem tido antes.
É preciso, ainda, levar-se em conta certos aspectos procedimentais que tornam aindamais patentes a discriminação e injustiça que se produziriam. A Lei 9.790/99 prevê umprocedimento de qualificação célere. A Administração tem 30 dias para apreciar o pedido emais 15 dias para publicar a decisão, visto que se trata de conferência de poucos documentos.
Já o procedimento para obtenção do título de utilidade pública pode ser mais demorado, pois a documentação prescrita pelo Decreto 50.517/61 é bem mais extensa e sua análise requer a verificação de relatórios de atividades e demonstrativos contábeis dos três anos anteriores ao pedido. Ademais, como a legislação não fixa prazo específico para decisão, admite-se que, caso a documentação esteja incompleta, o processo seja baixado em diligência para que a requerente providencie documentos faltantes ou ofereça esclarecimentos quanto a pontos obscuros dos relatórios ou balanços.
A partir destes dados, imagine-se a seguinte hipótese. Uma entidade poderia, durante oprazo de convivência do duplo enquadramento, requerer sua declaração de utilidade pública e na semana seguinte requerer sua qualificação como OSCIP. Caso a documentação do primeiro pedido estivesse incompleta, o processo seria baixado em diligência. Levando-se em consideração que as notificações administrativas só produzem efeito na data de seurecebimento, não basta que o prazo de diligência seja exíguo. Deve-se a ele somar o trâmitenecessário para confecção e postagem do ofício de notificação, a data entre a postagem e oefetivo recebimento, e a data entre postagem da resposta e seu efetivo recebimento na
Administração. Assim, é perfeitamente possível que o pedido feito posteriormente, por ter um prazo legal determinado, seja decidido antes do pedido anterior, cujo procedimento permite várias diligências. Nesta hipótese a entidade só obteria o título de utilidade pública
posteriormente à qualificação como OSCIP unicamente porque não instruiu corretamente seu pedido. A vigorar a interpretação literal, a Administração teria que lhe conceder apossibilidade de manter tanto o título de utilidade pública quanto a qualificação como OSCIP.
Ela seria assim beneficiada por sua falta de diligência. Não se trata de uma hipóteseabstratamente elaborada, há pelo menos um caso assim nos cadastros do Ministério da Justiça.
Aplicando-se a interpretação literal, tal entidade seria beneficiada em detrimento de outrasque, por terem sido diligentes e instruído corretamente seus pedidos, obtiveram o título deutilidade pública com maior celeridade.
Além da discriminação injustificada, a literalidade acabaria por inutilizar o artigo 18da Lei 9.790/99. Se entendêssemos literalmente a expressão “anteriores”, concluiríamos que aquelas organizações já qualificadas como OSCIP estariam fora da abrangência do parágrafo único e, deste modo, poderiam solicitar o título de utilidade pública federal. Ora, a seguir-se este raciocínio bastaria a todas entidades detentoras do título de utilidade pública pedirem o cancelamento de seus títulos e solicitarem a qualificação como OSCIP. Uma vez publicada a qualificação, poderiam então solicitar o título de utilidade pública. Assim, o título não seria mais anterior, visto que concedido por um ato publicado posteriormente à data da qualificação como OSCIP. Não se poderia negar o título de utilidade pública a uma OSCIP que já o possuiu no passado, mas já não o possui mais. Mais uma vez, a literalidade acabaria por negar vigência ao artigo 18, tornando inútil a opção nele determinada, já que todos que a fizessem poderiam, após cancelado o título, requerê-lo novamente em data posterior.

5-Conclusão
O sentido do artigo 18 não foi fazer migrarem as entidades do regime de utilidadepública, ou do regime da assistência social, para o regime das OSCIP. Foi sim conferir clareza e uniformidade ao tratamento que o Estado dispensa às organizações não governamentais que atuam em prol do interesse público. A lei 9.790/99 não obriga as entidades enquadradas conforme outros diplomas a requerem a qualificação nela prevista. O que ela faz é inaugurar um novo modelo de relacionamento do Estado com as organizações da sociedade civil, tentando pôr fim àquelas práticas burocráticas de múltiplos enquadramentos legais.
Burocracia que onera as organizações civis, o Estado e, conseqüentemente, toda a sociedade.
Esta realidade de múltiplos enquadramentos também compromete a clara compreensão doTerceiro Setor por parte do conjunto da sociedade.
O art. 18 apenas trata da hipótese de que entidades enquadradas conforme os diplomaslegais anteriores pudessem, se isto fosse de seu interesse, fazer uma alteração paulatina deregime. O período de co-existência de enquadramentos permitiria a uma entidade que sempre atuou conforme um marco legal tradicional, dentro de um modelo assistencialista por exemplo, sopesar as implicações de uma mudança para o marco regulador recém criado.
O fato de a co-existência de múltiplos enquadramentos ocorrer por um períodonecessariamente transitório revela que o sentido da lei foi determinar que, findo aquele prazo, as organizações do Terceiro Setor pudessem definir com nitidez seu enquadramento legal perante o Estado e, especialmente, perante a sociedade.

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